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segunda-feira, 2 de maio de 2011

A dubiedade brasileira

Transcrevo em resumo um artigo de Adriano Silva, do Gizmodo, de 1996. Mais do que apenas o país do jeitinho, o Brasil é cheio de contradições. Uma festa de paradoxos, onde o lógico é excessão.

Entre o quimono e o jeans

O Brasil sempre esteve de alguma forma, receptivo à organização liberal da economia. No entanto, estivemos também sempre dependentes de um Estado grande e provedor. É possível que boa parte de nossos problemas se deva ao fato de nunca termos investido de verdade em um caminho definido de desenvolvimento. Nunca instituímos uma economia planejada e um Estado controlador, e também nunca apostamos numa economia de mercado e num governo que fosse meramente o árbitro da partida.

Até o final da década de 80 essa contradição entre planejamento com governo grande e competição com governo pequeno podia ser traduzida pelos conceitos de socialismo e neoliberalismo, dois sistemas econômicos distintos que mal se falavam. Hoje, a contradição está representada por dois estilos dentro do mesmo sistema. De um lado está o capitalismo de estilo ocidental, cujo paradigma é os Estados Unidos, e de outro está o de estilo oriental, cujo paradigma é o Japão (agora também a China).

O capitalismo de estilo ocidental origina-se na ética protestante. É essa maneira de ver e compreender as coisas que deu aos Estados Unidos a base para o desenvolvimento de conceitos como democracia, liberdade individual e competição. Ela se funda na idéia do indivíduo que age sobre o seu meio e que tem uma consciência aguda dos próprios direitos. O estilo oriental, por sua vez, origina-se no confucionismo. Se para a ética protestante o indivíduo deve transformar o meio em que vive, para o confucionismo o indivíduo deve se adaptar às condições que estão dadas. O que para o Ocidente é consciência dos próprios direitos e democracia, para o confucionismo é consciência dos próprios deveres e hierarquia. O que para os americanos é liberdade individual e busca do equilíbrio pela competição, para os japoneses é trabalho coletivo e busca do equilíbrio pela harmonia.

O capitalismo de estilo ocidental surgiu nos Estados Unidos na virada do século, com o advento da produção em massa. As mesmas técnicas, adaptadas, geraram o fabuloso crescimento econômico que o Japão experimentou a partir da década de 50. A adaptação realizada pelos japoneses, porém, terminou por criar o estilo oriental. Ou seja, um capitalismo feito para caber nos moldes confucionistas milenares da sociedade japonesa. E, se o estilo ocidental dos Estados Unidos inspirou e continua inspirando boa parte do planeta neste século, o estilo oriental do Japão é o grande exemplo seguido de perto pelo Sudeste Asiático como um todo.

O estilo oriental traz um governo forte, atuando diretamente na economia. No Japão, a economia ainda é fortemente regulada, embora pressões externas e internas estejam gerando um processo de desregulamentação. Na Coréia, o papel do Estado na sociedade é ainda maior. O governo coreano executa seu planejamento de modo mais autoritário do que o japonês. Como o financiamento está centrado no Estado, as companhias coreanas estão muito mais sujeitas às determinações do governo. Não é raro o governo coreano definir as companhias que devem entrar ou sair de determinado negócio. Tanto no Japão quanto na Coréia, o Estado tem nas mãos as rédeas da economia: controla a produção de cada indústria, a competição e a expansão das empresas. Mas, na Coréia, o governo chega ao ponto de ter participação acionária nas companhias e a estabelecer para elas mercados e estratégias.

Essa situação vem mudando gradativamente. O Japão está desregulamentando sua economia, incentivando as importações e tornando o ambiente mais propício à competição. Na Coréia, as companhias têm realizado esforços visando à quebra de sua estrutura autoritária de gerenciamento. No entanto, o estilo oriental ainda é — e será, por muito tempo — uma das características da região e merece, pelas diferenças que impõe, a maior atenção dos empreendedores ocidentais.

Diante desses novos modelos de como organizar a atividade produtiva de um país, o Brasil parece ainda manter a sua histórica dubiedade. De um lado há um Brasil que pensa grande, que enxerga longe e que trabalha duro para encontrar seu lugar no novo panorama da economia mundial. É o Brasil competitivo, que funciona por si só. De outro lado há o Brasil que ainda precisa de um Estado grande para garantir a proteção de seus mercados e também a socialização de seus freqüentes prejuízos. É o Brasil ineficaz, sem preparo para a competição e aparentemente desinteressado em adotar as mudanças que os novos tempos impõem.

Confrontando a postura econômica brasileira com os estilos ocidental e oriental, constata-se que o Brasil se mantém externo a ambos sob vários aspectos. Os direitos individuais do estilo ocidental, por exemplo, não têm presença forte no Brasil. A cidadania e a valorização do ser humano não são preocupações nacionais. Por outro lado, a consciência dos próprios deveres, pedra fundamental do estilo oriental, também não pode ser apontada como uma característica brasileira. Ou seja, nesse campo o Brasil está no meio do caminho.

De certa forma isso também acontece em relação ao papel do Estado. O projeto da economia brasileira é basear-se na competição e nas leis de mercado. No entanto, existem regras e protecionismos que nem o Japão possui. A tarifa média japonesa para importações é 3%. No Brasil, está em 14%. Sem falar no imposto de consumo, que no Japão é também de 3% e que no Brasil, representado pelo ICMS, chega a 25% num Estado como o Rio Grande do Sul. Ao lado disso, o governo traz uma tradição de pouco rigor em áreas em que deveria atuar sem titubeio, como no combate à sonegação ou na penalização por fraudes. Ou seja, o Estado brasileiro é grande e ineficaz, o contrário do que consta na cartilha do estilo ocidental, onde o projeto do governo é ser pequeno e eficiente; e está distante também do que acontece no Japão, onde o tamanho e o papel do governo corresponderam nos últimos cinqüenta anos, ao mais notável crescimento econômico de um país em todos os tempos.

O perfil do governo brasileiro contribui também para que a competição esteja mal estabelecida no país. Nos Estados Unidos a competição é a base para o equilíbrio social e para a satisfação das necessidades. No Brasil, a tradição de favorecimentos e de tráfico de influência e informações, da qual o Estado tem sido cúmplice, colabora para que as oportunidades entre os competidores não sejam as mesmas, gerando ambientes propícios ao aparecimento de cartéis e monopólios. A entrada de novos jogadores é dificultada, e essa competição mantida em banho-maria faz com que muito facilmente, no mercado brasileiro, os preços sejam mantidos no patamar mais alto possível e a qualidade em padrões apenas aceitáveis.

O Brasil tem muito mais semelhanças culturais e éticas com o capitalismo de estilo ocidental do que com o de estilo oriental, embora o país pareça estar a meio caminho entre ambos em muitos aspectos. Passada a era em que os modelos econômicos eram incompatíveis e arrastavam o mundo para uma discussão que era mais política do que econômica, já está mais do que na hora de o Brasil escolher um caminho de desenvolvimento e apostar nele as suas fichas. As cartas para a próxima rodada deste grande jogo que é a economia global já estão dadas, e a mão está excelente para o Brasil. Talvez nunca tenha estado tão boa. Agora é jogar.